6.01.2013

Portugal - O País Agridoce




O Passeio das Virtudes

         Comprei um livro de Vergílio Ferreira, para evitar falta de assunto da próxima vez que tiver que passar pela alfândega portuguesa, e aluguei um apartamento.
        
      A escolha do lugar para morar não foi fácil. Não que falte, que isso tem. Mas principalmente porque, quando você se depara com uma cidade fascinante, é como estar frente a frente com uma mulher do mesmo fascínio, feito a Adélia: por onde começar a tocar, onde é que se aninha? Você pode nem tomar esse cuidado, mas tocar ou fazer ninho a esmo é sempre não saber aproveitar tudo o que o fascínio pode revelar, se não for meticulosamente vasculhado. O Porto é como uma pedra preciosa enfiada em barranco à beira-rio, e, por isso, tomei cuidado, fui cauteloso, prestei atenção e acabei me decidindo por um pequeno apartamento, de quarto, sala, cozinha e banheiro, perto do centro, com vista para o rio Douro.

         Não que o apartamento tenha vista para o Douro, porque não tem. A rua é que tem. Já o apartamento dá para os fundos do prédio, o que pode ser uma desvantagem parcial. Mas o que me fez decidir por ele foi que, enquanto examinava os cômodos, na companhia do proprietário, tive a curiosidade de saber por que a parede da cozinha era diferente das outras. As outras, eram apenas brancas e lisas. A da cozinha era feita de pontos coloridos, miríades de brilhos.

         Parece que o proprietário tinha um certo orgulho do detalhe da propriedade. Eu também teria, se os fundos da minha casa fossem feitos com um trecho da Muralha Fernandina. Emoção igual terá o brasileiro que, um dia,  alugar casa ou apartamento construído a partir das futuras e inevitáveis ruínas do Cristo Redentor. Além da vista da baía da Guanabara, oferecerá restos de um monumento.

         Enquanto o dono do apartamento no Porto me explicava a diferença da parede, comecei a tocá-la com cuidado. Sabia que não seria o primeiro a pôr as mãos e que talvez o meu toque só provocasse indiferença. Mas o que mais podia fazer na hora de ver e me encostar numa parede construída nos confins do século XIV? Um outro trecho da Muralha Fernandina é monumento no alto de uma das pedras da cidade, sempre fotografado e visitado por hordas de turistas. Mas esse pedaço é mais íntimo, quase ninguém sabe dele. É assim também quando uma mulher bonita caminha pelas ruas da cidade e muita gente olha, observa e comenta. Mas poucos trancam a porta da casa e ficam frente a frente com ela.

         Parece que, para viver bem no Porto, é preciso cuidar desses detalhes. É uma cidade inteira resguardada, atrás das portas, dos cercos e das muralhas. Nada é exposto, nada escancara. Tem sido assim nesses últimos dois mil anos. A Muralha Fernandina foi construída para substituir um cerco ainda mais antigo, quando os espanhóis, sempre eles, quiseram, mais uma vez, invadir o lugar e recuperar a posse. O muro resistiu e manteve a cidade inatingível, como ela sempre se orgulhou de ser. E não foram só os espanhóis que nunca entraram. Os árabes também tentaram, sem conseguirem atravessar o rio. Ficaram na margem sul, onde está, hoje, outra cidade, separada por pontes sobre o Douro. É Vila Nova de Gaia, que os portuenses ainda olham com certo desprezo nortenho e chamam de Marrocos. Eles, que nunca foram invadidos, e que chamam o Porto de “A Invicta”, podem fazer essas coisas.

         Se o corpo de uma mulher bonita, além da beleza física, tem nomes preciosos que identifiquem os pontos, como seios, monte-de-vênus, bacia, quadris, ancas, coxas e bunda, o Porto também tem.  É tudo muito caprichoso. Se você sair da rua da Fonte Taurina, que fica na Ribeira, lá embaixo, às margens do rio, e subir ruelas íngremes e quase inescaláveis, vai dar no Passeio das Virtudes, que é onde eu moro agora. Esse Passeio tem casas (entre elas, a minha) somente de um lado, porque o outro é amparado por um muro baixo, onde as pessoas se debruçam e vêem a última curva do Douro, metros abaixo, antes de se perder na grandeza do Atlântico. Depois, siga em frente e vá dar no Largo do Viriato. Desça muito outra vez, até esbarrar numa rua pequena. Ali, tem uma casa onde, dizem, nasceu o Infante Dom Henrique, e o nome dele está no começo da história do Brasil. Foi o homem que, por ser infante, impossibilitado de chegar ao trono, dedicou-se às artimanhas da navegação e deu aos portugueses a arte de revirar o mundo. Deve ter sido o único nobre a viver por aqui, porque o Porto, cidade de comerciantes e burgueses, tinha uma regra: gente com títulos, os inúteis da corte, sem mercadorias para vender, não podia se estabelecer na cidade. Na verdade, só tinha o direito de fazer três pernoites dentro dos limites da Muralha e depois era obrigada a tomar outro rumo e ir dormir em castelos longe dali.

         No Porto também tem a rua do Lindo Vale, a rua da Graciosa, a rua do Abraço, a rua da Piedade, a praça da Cordoaria e a rua das Flores. Tem a Escadaria da Verdade, a rua Sobre-o-Douro e a rua do Miradouro, a rua Firmeza e a rua Formosa, uma ao lado da outra. Tem o Largo da Fontainha, a Praça da Alegria e a rua do Heroísmo. Mas também tem ruas, várias delas, com nome de gente, que mereceu a homenagem para depois virar apenas nome de rua e ser esquecida no que fez para merecer a honraria. Virar nome de rua é morrer duas vezes. 

         A Adélia deixou o filho com a tia e veio aqui para a comemoração da primeira noite no Passeio das Virtudes. Trouxe duas garrafas de vinho. Uma, a Pêra Manca, a gente bebeu até a última gota. A outra, Barca Velha, ficou fechada.  E ela dançou se esfregando contra a minha Muralha Fernandina.


5.29.2013

Portugal - Um País Agridoce




A mulher que caiu do céu


         Tinha ficado combinado que, no dia seguinte, ia me encontrar com Carlos e Clara na praia de Miramar, para ver a apresentação dos alunos do curso de paraquedismo.  Como eu tinha a experiência de conversar sobre cuecas, achei que ir ver gente pulando de paraquedas não ia ser nada surpreendente e fui, conforme o acertado, me encontrar com eles no ponto da praia em frente à casa de portão amarelo.
        
          Algumas praias do norte de Portugal são, a bem da verdade, mais literárias do que praianas. Tem a areia, tem as rochas e tem as ondas que batem contra as rochas. Mas tem a água muito fria, gelada, que, se para as mulheres faz com que os biquinhos dos peitos fiquem hirtos e radiantes, tem a propriedade de, nos homens, lançar os ovos virilha acima. A gente entra na água, é atravessado por uma rajada cortante de arrepios, e, pronto, o saco, antes todo pomposo, encolhe e fica vazio.

         Quando o avião começou a fazer rodeios no céu em cima da praia de Miramar, Carlos e Clara ainda não tinham chegado. Mas havia uma pequena multidão, na areia. Juntei-me a ela. Lá em cima, os primeiros alunos começaram a saltar. Na areia, um alvo marcava o ponto exato onde deveriam pousar. Mas foi aí, justamente aí nesse momento, que o vento (o mesmo vento que sempre existiu em Portugal e que empurrou as caravelas em direção ao resto do mundo por descobrir) deu o ar de sua graça. Embaixo, onde nós estávamos, era só pôr as mãos nos bolsos dos casacos e diminuir o comprimento do pescoço para dentro da gola. Lá em cima, parece que a situação ficava mais drástica.

         Os seis paraquedistas passaram, então, empurrados pelo poder do vento, a fazer uma espécie de nado sincronizado nas alturas. As pernas se abriam, os corpos se cruzavam contra o azul do céu. As cordas dos paraquedas se esticavam.  A coisa começou a ficar bem mais emocionante. Eles se aproximavam da areia. O alvo continuava no mesmo lugar, eles é que não se decidiam para onde ir. O vento soprava para o oeste. E lá iam eles na mesma direção.
-Ohhhhhhhh - delirava a platéia plantada na areia.

         O vento, muito inconstante, se empinava para o leste. Os paraquedistas seguiam atrás, sem, nem por isso, perder a força da descida. Chegavam cada vez mais perto da areia, mas já sem garantia alguma de que acertariam o alvo. Foi aí que alguém resolveu raciocinar: tem alvo, tem gente descendo, tem vento forte e tem nós aqui, debaixo deles. E deu o alarme:
-Saiam, saiam todos! Cuidado!

         O nado sincronizado começou, então, também na areia. No início, era uma coisa tímida, de poucos passos, apenas o suficiente para arredar e deixar sobrar espaço para paraquedista e paraquedas. Mas eles se aproximavam demais, em velocidade cada vez mais acelerada. As pessoas começaram a correr. Talvez a corrida dos corpos na areia formasse um canal magnético porque sempre havia um paraquedista atrás de alguém. Virou pânico. As botas dos alunos estavam sistematicamente apontadas para nós, em rodopios, em vaivéns, em grand-jetés desajeitados. O vento cantava Miramar afora.


         Nesse momento, um corpo celestial me escolheu como ponto de pouso. Fui para todos os lados, aos pulos. Tentei escalar a pequena duna coberta de vegetação baixa e escorreguei de volta. Fiquei deitado, com a barriga para baixo. Dois pés armados com botas bateram nas minhas coxas para escorregar em seguida, um peso de corpo humano acrescido de paraquedas se esparramou em cima de mim, agitado como um polvo embaralhado nos tentáculos. Era a Adélia, a mulher que caiu do céu direto pra dentro da minha vida. Senti, ali, que tinha me tornado o seu alvo.          

5.26.2013

Portugal - Um País Agridoce



A rua da mesma


         Nestes primeiros dias, o que mais tenho feito é ler as ofertas de emprego nos jornais. Portugal pode estar saindo da grande depressão dos anos 80, quando até passaram a chamar o de 25 de Abril de “ a revolução falhada”, mas emprego mesmo não tem ainda. Então, o que faço é ler os jornais, de uma ponta à outra. Aproveito para aprender o estilo local.

        O jornalismo tem vícios violentos, só que o estilo português é muito precioso. Parece que foram os franceses que inventaram que escrever bem é atravessar um texto inteiro sem repetir palavras, o que transforma o ofício da escrita numa desesperada caça de sinônimos. Pois bem, os jornalistas portugueses fazem isso com um rigor admirável. Bem que eu estranhei no início, quando li os primeiros jornais sentado no Café Buraco Quentinho, ali perto da Batalha, praça no centro da cidade do Porto. Tive que decifrar que, se no título da reportagem, já está estampada a palavra França, ela se torna mais ou menos proibida no texto e passa a ser “aquele país gaulês”. A Espanha, não dá outra - é sempre “aquele país vizinho”, mas a Itália, que fica mais longe e tem até que atravessar montanhas para chegar lá, é “aquele país transalpino”. Confesso que gosto quando eles chamam o Brasil de “aquele gigante latino-americano” ou a Bahia de “aquela terra de Jorge Amado” (viram? Eu não falei que ele era conhecido aqui? Não entendo por que os policiais duvidaram que fosse brasileiro), mas tropecei e até gaguejei quando encontrei um país apresentado como “aquela zona tórrida do globo terrestre”. Acontece que eu estava lendo a notícia sem prestar muita atenção e me perdi, o que me fez voltar todos os parágrafos, minuciosamente, para entender que era a África do Sul. Sinceramente, acho que o jornalista exagerou.

         Essa ânsia de não repetir palavras, para manter o brilho acadêmico do texto, é tão forte que um jornalista que conheci outro dia me contou que um certo jornal de Coimbra, cidade a 100 quilômetros ao sul daqui, chegou a ter problemas quando foi dar a notícia do corte de energia elétrica numa rua chamada Luz. Só resolveu o grave impasse ao publicar “Faltou luz na rua da mesma”. 

         Mas nem só com estilos franceses se espanta o leitor brasileiro. As palavras são levianas e fúteis, e basta que atravessem o Oceano Atlântico para mudarem de significado.  Por isso é que não me alarmei quando li “Silveira bate Pinto em corrida de bicicleta”. Fui com cuidado, destrinchando a coisa. Primeiro, senti um arrepio ao imaginar a dor que devia ter sentido o Silveira na corrida de bicicleta e até me perguntei se tinha sido contra o selim ou contra o guidon,  mas depois fiquei pensando que bater podia ser ganhar ou vencer e que, se fosse assim, a coisa estava explicada: Silveira e Pinto correram, mas só o Silveira ganhou.

         Não que eu seja obcecado por certas partes da anatomia, mas foi dias depois que também li: “Faltam rolas em Portugal”. Quer dizer, um sujeito bate a dele na corrida de bicicleta e, depois, todas as outras somem do país. Uma desgraça. Mas as rolas, que são animais importantes para a preservação da ecologia portuguesa (as cegonhas e os lobos também) estão ameaçadas de extinção, e não tinha outro jeito de dar a notícia a não ser criando todo esse alarme fálico, que me fez pensar que “se está faltando, alugo a minha”. Mas era desvario de desempregado, nada sério.

         E isso não é nada, em termos de bagunçamento lingüístico, se comparado com o que aconteceu quando um jornal de Lisboa resolveu homenagear o primeiro século de vida do funicular que vai da Avenida da Liberdade até o Bairro Alto. Como funicular não parece nome de meio de transporte e lembra, isso sim, verbo de ação íntima, como alguém que funicula outra, o bondinho, que passa os dias subindo e descendo, recebeu o nome de Glória, assim mesmo, sem cerimônia. Qualquer um pode pegar a Glória, subir na Glória, descer dela, tudo à vontade, só tem que pagar alguns tostões. E esse à-vontade ficou tão grande que o jornal não teve dúvida e pôs lá: “Glória trepa há 100 anos”. Fiquei encantado com tamanha vitalidade e pensei “Ah, mas então não está faltando rola, senão, como é que pode?” O Silveira, depois do impacto de bater o Pinto, também deve ter frequentado  Glória, a trepadeira secular.



Portugal - Um País Agridoce



E se Jorge Amado não fosse brasileiro?

         Depois de atravessar um Oceano Atlântico inteiro, com água, céu e nuvens manchadas pelo breu da noite, que só assusta a mim, mas que não afugenta nem pássaros nem aviões, surgiu a terra à vista, a linha fina do sul de Portugal, a margem oeste da Europa, e o dia nasceu. O país, visto assim de cima, brilhou com raios cor-de-abóbora, cor que parece não acontecer em nenhuma outra terra e que também é, dizem ser, a primeira que os olhos de um recém-nascido conseguem enxergar. As auroras deviam ser a hora dos partos, e Portugal, o berçário do mundo, porque só lá o dia chega com tanto cor-de-abóbora.

         O avião entrou no céu lusitano. Era espichar o olho e ver a Espanha, logo ali do lado direito de quem chega pelo sul, eternamente abraçada a Portugal, como se não quisesse largar a terra perdida há mil anos. O país é miúdo, tem escassez de território e, mesmo que o pouso estivesse previsto (se,  pela graça do bom Pai, nada acontecesse) para o Porto, bem lá no norte, os pilotos pareciam estar cientes de que, mal entrassem em Portugal, já era hora de começar a puxar os freios. E foi nesse ritmo de freada que passamos por cima de Albufeira, Lagos, Faro, Olhão, os tetos rosados de Lisboa, e seguimos em frente, perto do litoral, com sobrevôos relativamente dramáticos (mas nada acontecia, porque os anjos da guarda entendem de decolagens e pousos como ninguém) sobre Espinho, Granja, Aguda, Miramar, Madalena. Logo depois era a vez de surgir o rio Douro, mas umas nuvens duras, carregadas de chuva, dificultavam a manobra.  As nuvens do céu do norte de Portugal são sempre densas, ao contrário do mar, que é mais dado a calmarias, o que explica, em parte, porque os portugueses descobriram e inauguraram o mundo moderno em barcos, e não em objetos voadores. Calcularam as ondas e os ventos e decidiram que por via marítima a coisa prometia ser um sucesso. 

         Eu também devia ter feito os mesmos cálculos, mas estava ali, a bordo de um avião que gemia entre nuvens choronas, à procura de uma saída para o Porto, a cidade brotada exatamente na curva onde o rio Douro se joga para dentro do mar gelado. Os pingos da chuva portuense respingavam nos plásticos duplos das janelas. Eu cravava as unhas em qualquer coisa que estivesse ao meu alcance. Jurava que nunca mais atravessaria o Atlântico, que nunca mais iria querer viver na Europa, que nunca mais acreditaria na tecnologia.

         A portuguesa, nova, bem moderna, sentada ao meu lado, quis me acalmar:
-Sem crise.

       A hospedeira do ar (não riam. Eles também riem de aeromoça), que passava para verificar se tudo estava como o planejado, deu um sorriso profissional:
- Já estamos a aterrar no Aeroporto Francisco Sá Carneiro.

Primeiro, achei indevido da parte da portuguesa moderna me pedir que encarasse sem crise o sacolejo embrutecido do avião sobre o Porto. Depois, as palavras da hospedeira ricochetearam nas paredes internas da minha cabeça. Aterrar? Não seria uma palavra drástica demais? Mas as considerações sobre a aterragem cessaram quando me lembrei do nome do aeroporto. Futuquei o braço da moça ao meu lado, a moderninha:
-O aeroporto daqui se chama Francisco Sá Carneiro?

Não era pânico nem estertor, era uma consideração. O Francisco em questão tinha sido um liberal de grande importância na saída de Portugal da ditadura salazarista, derrubada com a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Também tinha chegado a ocupar o cargo de primeiro-ministro do país. E tinha morrido em um desastre de avião, quando o Cessninha em que ele viajava, de Lisboa para, justamente, o Porto, despencou rumo ao chão daquele mesmo aeroporto que agora tinha o seu nome. A gente sabe que as autoridades, uma vez mortas, merecem e apreciam essas homenagens, com placas e faixas cortadas por bispos e familiares enlutados. Mas por que o aeroporto? Não podia ser um teatro? Ministros adoram isso. Ou uma auto-estrada, daquelas bonitonas, que ligam grandes centros, para não parecer que a figura era de pouca monta.
-Minha nossa Senhora, que mau agouro uma coisa dessas –falei baixinho.

A moça do meu lado não comentou nada. Mas e se o rifle de longo alcance, com mira automática, usada por Oswald Lee para matar o presidente americano em Dallas fosse rebatizado, por seus fabricantes, de rifle John Fitzgerald Kennedy?  Por isso é que, hoje, com as devidas homenagens, ele é nome de aeroporto em Nova Iorque, e não de arma, o que, seguindo o mesmo raciocínio, faz com que Francisco Sá Carneiro devesse ser nome de revólver e não de aeroporto, se é que me entendem.

O avião, já quase desparafusado de tanto tremer e espernear, como se nós fôssemos o touro e as nuvens, os toureiros, apontou o nariz e entrou de cheio na chuva que caía pesada sobre Pedras Rubras, a zona residencial onde fica o tal aeroporto, cujo nome é melhor não ficar dizendo. Aterramos.  Só eu transpirava. Alguns passageiros olhavam distraídos para a pista através daqueles buraquinhos plastificados que, por pura demagogia, costumam chamar de janelas. Outros se espreguiçavam e procuravam os sapatos. Senhoras mais zelosas dobravam caprichosamente as mantas da companhia aérea. Se deixassem, elas, com desvelo doméstico, recolheriam também todos os copos, xícaras e guardanapos do pequeno-almoço (não riam. E nós, que nos contentamos com dizer uma coisa óbvia, feito café-da-manhã?) e entregariam na cozinha do aeroporto.

É na alfândega que a gente, os brasileiros, se dá conta de que Portugal se virou para a Europa e esqueceu o destino Atlântico – mesmo que “destino Atlântico” tivesse sido, um dia, mote de políticos, entre eles o ex-presidente Mário Soares, que volta e meia está no Brasil para nos elogiar e mostrar o seu apreço pelo filho dileto de Portugal, que somos nós. Mas foi o primeiro-ministro Cavaco Silva quem empurrou o país para dentro do continente e deu as costas para a África e a América de língua portuguesa, por motivos que vão desde as manobras econômicas até o fato de ele ser do Algarve, um das poucas regiões portuguesas que não mandaram muitos filhos para melhorar de vida no Brasil. A política sempre tem que ser considerada por esses sintomas afetivos. Dizem que o amor move tudo e talvez seja por isso que nenhuma autoridade, por mais canalha que seja, seja capaz de sancionar uma lei que prejudique, por exemplo, a própria mãe. É preciso considerar essas coisas na hora das análises mais frias e por causa disso, desse desapego pelo Brasil, criado na época do Cavaco Silva, é que os agentes alfandegários olharam para o meu passaporte com ar detetivesco, como se tivessem barrado na malha fina uma ameaça para a nação renascida das cinzas, rumo ao novo-riquismo europeu.

Eles me encararam. Eu, por falta de opção, encarei de volta. Me perguntaram de onde eu vinha. Eu disse. Quiseram saber quanto tempo ia ficar por aqui. Disse que um mês, o que era mentira, porque tinha vindo para ficar. Depois, perguntaram a minha profissão. Sempre é meio constrangedor dizer “jornalista” quando fazem uma pergunta dessas, porque não parece ser profissão, parece oportunismo ou desocupação, mas foi o que respondi.

Abriram a minha mala e, nessas horas, você só pensa: vai ter meia furada, vai ter cueca suja. Mas eles se surpreenderam foi com o xampu. Era um frasco desses de marca recente, que gosta de cores mais como o lilás, amarelo-ovo, azul-celeste. O meu, por acaso, era cor de tinta de caneta tinteiro. O homem ergueu e girou o frasco contra a luz, examinou com cuidado e me olhou com uma certa interrogação. Acho que entendi e, aí, respondi:
-Xampu, né?

Ele não acreditou:
-Xampô? Mandem examinar lá isso.

         E um deles foi embora, com o meu frasco sendo carregado com cuidado. Enquanto esperava pelo resultado do exame anti-doping, ele continuou a investigação:
-Então, você é jornalista. Lê muito...

         Achei simpática a constatação. Uma coisa delicada, pertinente. Respondi que sim. Ele foi esperto, bem matreiro:
 -Então, diga lá o nome de um escritor brasileiro.

         Provavelmente será, por toda minha vida, uma tarefa árdua entender por que a investigação dos agentes alfandegários abandonou os cosméticos e tomou rumo literário. Talvez se deva a uma estratégia investigatória extremamente elaborada, que eles aprendem em cursos de formação, e que funciona na base do, se tem cara de quem lê, pergunte sobre autores. Se é dentista, pergunte sobre amálgamas e porcelanas. Moça da vida? Pergunte sobre marcas de preservativos. Que coisa sofisticada, pensei, antes de responder:
 -Jorge Amado.

         Meu sorriso era amarelo, meio sem graça e com falta de jeito. Pensei: vai que o homem gosta de ler e pensa que eu só leio isso. Mas ele repetiu.
 -Não. Estou a perguntar um escritor que seja brasileiro.

         Senti que a coisa não ia ser muito fácil. E eu havia escolhido Jorge Amado exatamente para facilitar a compreensão, porque imaginem se eu tivesse dito Osman Lins ou Augusto dos Anjos e eles pedissem para eu dar uma breve explanação sobre o sentido da obra dos dois. Ia ser muito hermético e, aí, escolhi Jorge Amado, um escritor cujas linhas querem dizer o que está escrito mesmo, sem muita segunda intenção. 
-Jorge Amado - repeti.

         Ele alterou um pouco o tom da voz:
 -Brasileiro! Um escritor brasileiro!

         Pus o mesmo ponto de exclamação nervoso e contundente na minha resposta.
-Mas vocês querem o quê?! Que eu negue a nacionalidade de um escritor tão...tão (caramba, como é difícil achar um adjetivo que descreva uma literatura cheia de dendês e tabuleiros) tão...pitoresco?!

         Meu ataque surtiu efeito porque ele se reuniu com seus colegas de profissão, deliberou sobre o assunto com certa demora e voltou, já convencido de que a Bahia gerou Jorge Amado, que gerou o romance Gabriela Cravo e Canela, que gerou a novela Gabriela, que gerou Sonia Braga, que gerou uma revolução nas televisões portugueses. E lascou:
 -E Vergílio Ferreira, conhece?

         Meu Deus do céu, eu não sabia quem era. Pensei, pronto, agora me barram e me mandam de volta. Gaguejei uma resposta esfarrapada, que eles, de qualquer jeito, aceitaram. Mas me aconselharam a ler Vergílio Ferreira, um dos grandes escritores portugueses. Devolveram o meu xampu, liberaram o meu passaporte, permitiram que eu fechasse a mala e me deixaram passar.

         Atravessei a porta de vidro da ala internacional, caminhei apressado pelo saguão e saí do prédio para entrar no Porto. A cidade estava lá, bordada contra o céu molhado. Cá dentro do peito, uma emoção de Pedro Álvares Cabral às avessas.

  

12.26.2005

Razões para viver

Eu era amigo do Hominho, que se chamava Anselmo. Ele era filho de dona Alta, que se chamava Altamira. Ela era amiga da minha mãe, em Baixo Guandu, a cidade plana, quente, de ruas longas e retas na ponta do triângulo formado pelo encontro dos rios Doce e Guandu. As duas eram da Congregação Mariana e usavam véu preto quando entravam na igreja. Com a diferença de que minha mãe usava roupas coloridas, vestidos brancos com bolinhas azuis, saias vermelhas e blusas cor de creme. Dona Alta, para lembrar o marido morto, usava preto e duas alianças grossas no dedo anelar da mão esquerda.

Hominho e eu, a gente tinha oito anos, mas ele era mais baixo. E também era mais ágil e mais veloz para subir em árvores, atravessar rio, correr pelas ruas quando alguém, mais alto ou mais velho, corria atrás de nós. Eu tinha duas cachorras, a Mimosa e a Malvina. Na casa da dona Alta só tinha galinhas e porcos.

E eu estava lá, na casa dela, esperando a hora certa da minha mãe e dona Alta apanharem os véus, os missais e os terços, e saírem pra Igreja. Era em momentos assim que Hominho e eu cometíamos o nosso pecado preferido: caçar lagarta-fogo debaixo do clube, um casarão com a porta principal virada para a praça e os fundos com pernas compridas enfiadas nas águas do rio. O lugar era a nossa piscina, sendo as vigas de madeira entre as pilastras os nossos trampolins. E era também um bestiário, com lagartas, marimbondos violentos, borboletas amarelas, ninhos de passarinhos.

Mas na hora de sair, dona Alta ouviu o ruído no quarto dela. Vinha de algum lugar, era fino, insistente, como um coro de recém-nascidos à procura da mãe. Ninguém mais ouvia, só ela. Por isso, todo o mundo se amontoou no quarto, em silêncio, até que Hominho desse o alerta:

-Ouvi! Ouvi! É no guarda-roupa!

Dona Alta abriu a porta do armário grande, de madeira brilhosa. Tirou casacos guardados em sacos de plástico com naftalina, tirou cobertores grossos, tirou caixas, embrulhos e pacotes. Aí, gritou:

-Ah, meu Deus! É rato!

Hominho e eu pulamos na frente das mães. Passamos entre as pernas agitadas delas e olhamos para dentro do guarda-roupa. No canto, quatro filhotes, menores que dedos, com peles tão finas e sangüíneas quanto lábios de gente muito branca, tão delicados e ingênuos quanto olhos de crianças, procuravam a mãe, que tentava fugir com eles pela boca.

Dona Alta voltou para o quarto com uma vassoura grande, de cabo comprido. Mas minha mãe pediu:

-Vamos embora, Alta. A missa já deve ter começado.

E ficamos nós dois com a incumbência de dar sumiço nos bichos do guarda-roupa. Dona Alta explicou, palavra por palavra:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.

E ainda explicou:

-As roupas e as caixas, pode deixar. Quando eu voltar da missa, vou limpar o guarda-roupa com álcool para depois arrumar tudo outra vez.

Quando as duas mães saíram para rezar, com os véus, os missais e os terços, Hominho e eu nos agachamos em frente da porta do armário. Os ratinhos se espreguiçavam, esticavam as pernas e os braços, enrugavam as caras, apertavam os olhos pequenos, como se viver fosse atravessar a nado um rio largo, caudaloso e bravo. Com uma força magnífica, abriam as bocas à procura das tetas da mãe.

-Vamos levar eles embora?

Fui eu que tive a idéia.

-Mas a mãe falou pra matar e jogar fora.

-A gente não mata. Só joga fora.

E aí tiramos os sapatos pretos de dentro da caixa. Agarramos a mãe pelas patas, abraçamos os filhotes nas mãos e guardamos a família inteira debaixo da tampa de papelão.

O sol estava bravo quando pegamos uma das ruas muito retas de Baixo Guandu. Atravessamos a praça, descemos a ribanceira ao lado do clube e chegamos, então, no nosso esconderijo com piscina, trampolim e bestiário.

Lá, abrimos a caixa e soltamos a mãe com seus filhotes. Ela cheirou a viga com aflição, rodou sobre o próprio corpo várias vezes, arrastou o rabo na madeira e voltou para os quatros filhos miúdos, quase invisíveis, quase como orvalhos cor-de-rosa vivo. Depois, fomos para casa, pusemos os sapatos de volta no lugar certo e saímos para outro grande pecado, que era o de ir até o cercado da prefeitura para futucar os cavalos, que reagiam com coices bravos.

Por qualquer razão, talvez até falta de tempo, ou coisa mais banal, ou motivo mais sério ainda por entender, nunca mais voltei a Baixo Guandu. Só me lembro do delta das águas, do calor, das ruas muito retas e entrecruzadas. Lembro também dos véus, dos missais e do sino da igreja. E me lembro de 30 anos depois, quando minha mãe me perguntou, como quem, subitamente, puxa pela memória a notícia que já era para ter sido dada há mais tempo:

-Sabe o Hominho?

Olhei para ela, sentada na sombra da castanheira na beira da praia. Os olhos da minha mãe brilhavam. A boca se preparava para anunciar a tragédia. Eu ainda estava em silêncio, na observação desse desenho materno, quando ela completou a frase:

-Se matou.

Esperou que eu reagisse. E continuou:

-Tem uns dois anos já. Encontrei a dona Alta e ela me disse.

Então eu me remexi por dentro para querer saber as razões para se matar.

-Coitado, não agüentou. Tinha dívidas enormes, a mulher dele foi embora com os filhos. Chegou um dia em casa e deu um tiro nas têmporas. Que horror, meu Deus.

Pensei nele. E aí lembrei também que Hominho era capaz de atravessar, como ninguém, o encontro do Guandu com o rio Doce. Que sabia subir, sem escorregar, as pedreiras do morro atrás da serralheria. E que sabia levar ninho de passarinho de um lugar para outro sem machucar os ovos.

Mas foi então que voltou a voz da dona Alta, quando saía de casa, amarrada no luto, presa ao missal. Foi ela quem disse:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.

12.25.2005

A traição

Ti-Jean e Chris tinham uma vida inteira de coisas em comum. Além de serem amigos de infância, desde os primeiros dias de ir à escola, eram também, os dois, cada um do seu jeito, muito bonitos. Ela, a Chris, se serpenteava quando caminhava, com passos lentos, pelas ruas de Sète, onde a França se despenca em falésias para dentro do Mediterrâneo. Ele tinha o andar empinado, rígido, e, sem se importar com dias quentes ou dias frios, escondia as mãos nos bolsos.

Ti-Jean tinha os olhos insuportavelmente azuis e, por serem grandes e redondos, refletiam o azul contra o sol, contra a lua, contra as lâmpadas de dentro de casa. Ela tinha olhos amendoados, verdes, e, por isso, era conhecida como “Chris aux yeux de chatte”. Era Chris dos olhos de gata. Moravam juntos e dormiam na mesma cama do apartamento velho perto do mar. Numa almofada grande da sala, dormia Rita, chamada Ritá. Era a cadela sem raça, preta, de pernas compridas e olhar sonhador.

Ritá era uma farejadora contumaz. Cheirava tudo. De manhã bem cedo, esfregava o nariz na cama onde Ti-Jean e Chris tinham passado a noite. Vasculhava cada pedaço do lençol e das fronhas, numa intimidade assustadora e ciumenta. Depois, entrava no banheiro grande, de paredes pardacentas, e cheirava a toalha pendurada, o rolo de papel higiênico, a borda da banheira, a calcinha ou a cueca deixadas no chão.

Mas sonhava por Ti-Jean e era ele quem ela mais cheirava. Com o focinho úmido e gelado, percorria os óculos dele, à procura dos olhos azuis cintilantes. O nariz preto e carnudo arfava, se dilatava num ritmo acelerado e miúdo, enquanto cheirava as pernas dos óculos desde a parte atrás das orelhas até as lentes grossas, de míope grave. Gostava também de lamber as sobrancelhas do homem com quem sonhava.

Um dia, as coisas em comum se embaralharam, se intricaram, ficaram confusas e Ti-Jean e Chris decidiram que não iam mais viver juntos. Ele foi ríspido, seco, e viajou para Paris. Queria, finalmente, procurar emprego na cidade onde tinha nascido e que tinha deixado anos antes para viver no calor do sul do país. Chris e Ritá ficaram. Chris chorou na cama, atrás da porta, na cozinha, no banheiro, nas escadas do prédio e nas ruas, por onde andava malemolente e bela com os olhos verdes infernais. Ritá, não. Esperou três dias no corredor onde se abria a porta da rua. Depois, esperou na cozinha, no quarto e no banheiro. Mas não chorou. Apenas esperou.

Até que Chris chegou em casa e não encontrou a cadela preta. Procurou, primeiro, em todos os quartos e cômodos trancados do apartamento velho e imenso. Foi desde a porta da rua até o último quarto, nos fundos, atrás da parede onde ficava a lareira abandonada. Depois, procurou nas ruas, nas praças, nas alamedas. Pôs anúncios em bares, cafés e restaurantes.

E só aceitou o sumiço quando, um mês e meio depois, Ti-Jean voltou para fazer as malas de vez e apanhar Ritá, que havia desaparecido. Ele, com o rosto vermelho e os olhos azuis molhados de lágrimas traídas, xingou e acusou Chris que, então, se trancou no quarto e chorou sobre os olhos verdes.

Mas oito meses depois, ele voltou a aparecer em Sète, e viu, de perto, com uma proximidade quase provocadora, que Chris, sem sair do apartamento grande, inútil e velho, de paredes pardas, esquecia-se dele aos poucos. Para isso, ela abraçava, beijava e ouvia palavras de amor de Luc, o provençal, com olhos castanhos como os de Ritá.

Assim, Ti-Jean disse que ia ficar na casa de Poupette, a amiga enfermeira e gorda, que morava fora da cidade, num campo rodeado de lavandas e rosmaninhos. E foi lá, caminhando no bosque francês, de árvores mansas e flores suaves, que ele, um dia, ouviu um latido fino, sonhador, vindo de um quintal cercado por muro alto.

Olhou pelo portão. Lá dentro, a cadela preta, de pernas compridas, brincava com uma bola, vermelha e azul como a bandeira da França. Da sala da casa, uma mulher viu Ti-Jean no portão. Devagar, com cuidado e atenção, abriu a porta para perguntar o que ele queria. E chamou a cachorra:

-Milou!

E foi quando a Milou se levantou para ir até a mulher, que Ti-Jean, com o coração contorcido, com a voz embalada pela saudade, também chamou:

-Ritá!

A cachorra parou. O som veio de longe, de algum lugar remoto, de memórias velhas. Surpresa, olhou para o portão. Esperou, arfou o focinho e, só então, se preparou para correr em direção aos antigos olhos azuis. Pôs as patas da frente nas grades do portão, abanou o rabo e ganiu baixo, fino. Era o coração dela que também se contorcia. Em seguida, enquanto a mulher se aproximava, Ritá correu para dar a volta em todo o quintal. Ti-Jean e a mulher já estavam próximos um do outro. A cachorra apareceu na rua, solta e tonta de felicidade.

Ti-Jean decidiu que não ia explicar nada. O portão estava fechado, a mulher teria que voltar para apanhar a chave. Ele, então, se afastou com passos rápidos e chamou:

-Ritá, viens!

Ela foi. Levantou novamente as patas e se apoiou nas pernas dele. Cheirou as calças, a cintura, as mãos, a braguilha onde permanecia, forte e vivo, o mesmo aroma do lençol de antigamente. Os ganidos eram marcados pelos movimentos firmes e quase desesperados do rabo preto.
A mulher gritou:

-Milou, Milou!

A cachorra abaixou as patas e olhou para o portão. Sorriu. Olhou para Ti-Jean. Chorou com sons finos, quase inaudíveis. Abaixou a cabeça. Ele pediu que ela continuasse ao lado dele, mas a mulher voltou a chamar. Ritá parou.

A mulher e o homem se olharam. A cadela, preta como um pedaço de noite sem lua, voltou para perto de Ti-Jean e cheirou tudo, com a alegria ávida e tresloucada dos reencontros súbitos que não servem para nada, que não aliviam a saudade nem a pena da separação. Então, latiu alto, com raiva, maldade e dor.

Correu de volta pela rua até reaparecer no quintal, atrás do portão. Sem tirar os olhos de Ti-Jean, viu quando ele se afastou e começou a ir embora. Ela lambeu a mão da mulher e, mais uma vez, com ansiedade, correu para fora. Ele acelerou o passo, como quem foge, e ela acompanhou Ti-Jean. E chegaram na curva, onde a estrada estreita se sombreava com as copas das árvores mansas.

Ela parou e ficou sentada. Queria só ver Ti-Jean mais um pouco e esperava que ele desaparecesse das vistas dela. Ele, antes de sumir, ainda se virou para trás e pediu, sem dizer nada. Ela não se moveu. Ti-Jean olhou para a frente, como um homem traído, incapaz de contar o que sente e o que dói. Quis ficar, quis falar, mas foi embora.

Ela latiu e os latidos, debaixo das árvores de grandes copas, falavam dos olhos azuis dele, que não esqueceria nunca. Tremeu o focinho, guardou para sempre o cheiro de Ti-Jean e, sem querer deixar dúvida sobre a façanha de ser feliz após cada traição, voltou para casa.

11.28.2005

O vizinho

Quero falar de um homem, que é o meu vizinho. Talvez, com quase absoluta certeza, o meu cachorro Negão seja mais indicado para falar dele porque foi ele, o cão, que chegou perto, cheirou e ofereceu a cabeça para que a mão do homem tocasse e acarinhasse. Eu, não. Eu fiquei apenas com a parte que nos toca, que são as palavras.

O meu vizinho usa, sempre, bermuda e camiseta de aposentado. Tem cabelos grisalhos. E os olhos baixos, como quem olha para a terra e nunca para as pessoas. A primeira vez que nos vimos era de manhã muito cedo, quando o sol ainda é úmido e doce e se espalha sobre a grama como se pudesse gotejar.

Ele estava lá, em pé, em silêncio. Passei perto, não disse nada. Ele não deve ter me visto. Olhava para o chão e para a grama radiante com o sol dos primeiros minutos do dia, que são sempre calmos e serenos. Talvez seja mesmo verdade que ninguém sofre entre as cinco e meia e as seis horas da manhã.

Dias depois, conversamos. A conversa, na verdade, começou entre o meu vizinho e o Negão, que se aproximou para cheirar o ponto do chão para onde ele olhava de maneira persistente e fixa. Ele, o vizinho, sorriu. Negão se aproximou e cheirou as pernas, as mãos, a barriga. Aí, ficou sentado e recebeu carinhos na cabeça.

Nós dois fizemos a nossa parte:

-Bom dia.

-Bom dia.

Um ano antes, eram três da madrugada quando bateram na porta da casa dele para avisar que o carro do filho único, de 24 anos, tinha se espatifado contra uma árvore. O corpo esperava para ser enterrado.

Ele me contou isso como se já não fosse nada de mais. O filho único estava morto. Até mesmo olhei para os olhos deles para ver se algum sinal, alguma dor, lástima, pena, dó, saltava das pupilas. Tudo estava intacto.

Cinco meses depois, a mulher dele, por não agüentar a certeza da morte do filho, decidiu tomar o mesmo rumo. Deixou o coração se arrebentar e foi embora. O vizinho então ficou no apartamento igual ao meu: três quarto, mais um para a empregada, dois banheiros, sala, cozinha e área de serviço.

Mas na cozinha e na área de serviço, e também no corredor que leva para os quartos, as paredes estavam furadas por pregos onde ele pendurava as gaiolas dos passarinhos. De tamanhos, cores e penas variadas.

Era lá, no apartamento, que o homem sozinho, sem mulher e sem filho, convivia com uma multidão que cantava, batia as asas, pulava de poleiro em poleiro e, mais que tudo, mais que nunca, mantinha viva a vida. Porque a vida é como os olhos: coisa pequena, delicada, apenas uma película muito frágil, e que, ao mesmo tempo, é capaz de abarcar o mundo inteiro.

Era isso que ele entendia quando estava acompanhado dos seus passarinhos espalhados pelo apartamento vazio. Até o dia em que ele colocou ovos numa panela com água no fogo para, depois, alimentar os amigos.

E, aí, procurou o sofá para se sentar. Sentado, pensou na mulher, no filho, era fim da madrugada, não tinha barulho que viesse de fora, e ele dormiu sentado. Quando acordou, uma fumaça densa saía da panela deixada em cima do fogão. A água tinha fervido e secado. Os ovos estavam pretos, queimados e grudados no fundo da panela.

Ele tossiu quando entrou na cozinha. E nas paredes, em todas as paredes da casa onde tinha gaiolas penduradas, estavam os corpos dos passarinhos sufocados.

-Eu abri as gaiolas, uma por uma. Peguei os passarinhos, um por um. Coloquei em cima da mesa, um corpo ao lado do outro. Ao lado deles, minha mulher e meu filho. Era como se eles dois estivessem ali também.

Ele desceu as escadas do prédio, o mesmo prédio em que eu moro, e foi até a grama, que ainda estava escura no fim da madrugada. Com uma colher, abriu pequenos buracos e enterrou todos, um por um. Até que, finalmente, conseguiu também enterrar, de uma maneira pessoal e particular, a mulher e o filho.

O Negão cheirou a mão dele, sem tocar o focinho. Ele acariciou o cachorro, outra vez. Nós, de novo, fizemos a nossa parte:

-Deve ser difícil para você.

-A gente se acostuma. E vai levando a vida.

Olhei para o Negão, calmo e firme como um anjo, sentado sobre a terra do pequeno cemitério do meu vizinho.

11.24.2005

Uma coisa que aprendi com ele




O meu cachorro Negão, que, quando não está encardido, é todo branco, e mede 1,75m em pé, o que basta para que passe a língua na ponta do meu nariz sem grandes esforços, tem alguns medos. E é incapaz de negociar, já que faz questão de deixar bem claro que medo é medo, e que ser adulto não significa desmerecer o que grudou à personalidade desde os primeiros meses de vida.

Ele tem medo de cachorro pequeno, destes bem miudinhos, que levam a vida como bibelô. Quando eles latem irritantemente fino, várias vezes, o meu Negão recolhe as orelhas, guarda o rabo e se esconde, inteiro, atrás das minhas pernas. Talvez por tique nervoso, lambe o próprio focinho várias vezes, o que serve para mostrar a angústia que está sentindo no momento do cruel ataque do cachorrinho, que costuma vir com laços nas orelhas ou no alto da cabeça.

Tem medo, ou seria melhor dizer pânico, do barulho dos plásticos ao vento. E nisso é irredutível: não entra em carro que tenha, solto no banco traseiro ou dianteiro, alguma sacola de supermercado, não anda do lado do meu corpo onde estiver a mão que carrega compras de padaria e mercearia e, principalmente, se arrepia até os confins do rabo quando vê imensos sacos de lixo deixados na calçada à espera do caminhão de lixo.

Também se assusta com pessoas, qualquer uma, que se aproximar com alguma coisa, qualquer coisa, na cabeça. Pode ser chapéu, boné, filho novinho levado no cangote do pai, vendedor ambulante que carregue espelhos, cestos de vime, trouxas de artesanato.

Estes medos são coisas dele e eu respeito. Também respeito os faniquitos dos amigos humanos quando gritam diante de baratas ou ratos, que, a bem da verdade, são bichos que não me provocam nada – nem asco. Compreendo (sem esconder um certo risinho, é bom que se saiba) quem tem pavor a túneis, barcos em mar aberto, trovões e relâmpagos, assim como espero que compreendam o pânico primordial que se instala no meu corpo quando tenho que me sentar numa poltrona que, depois, levanta vôo e cruza os oceanos.

Mas, às vezes, acontece que o meu Negão não mostra medo. Mostra, pelo contrário, desagrado e certa revolta. Sei disso porque os pêlos da nuca se arrepiam, ele dá dois passos para trás e se coloca em posição de ataque. Já tentei convencer o meu cachorro de que não gostar de uma ou outra pessoa é contingência da vida em sociedade, mas que, por isso mesmo, é preciso uma certa diplomacia e um bom fingimento sobre estar tudo bem. Ele discorda. É sincero e espontâneo demais.

Na padaria onde gosto de tomar o café da manhã nos domingos, depois de uma longa caminhada a dois, veio, uma vez, uma moça loira fazer afagos no Negão. Chamego é coisa que ele nunca recusa, mas, desta vez, notei, logo na primeira aproximação, que os arrepios do pêlo da nuca tinham começado.

A moça bonita e loira falou:

-Mas que cachorro bonitão, meu Deus do céu.

Que ele é bonito, eu sei. Todo mundo sabe e quem não percebe isso é insensível e insensato. Ou incapaz de se enternecer com as belezas que a vida oferece. Pelo tom de voz da moça bonita, vi que era um travesti: uma voz que nasceu para ser rouca e que, a custa de alguma esforço, se afinou com falsidade e, por isso, ficou mais bamba na boca do que dentadura de dentista ruim.

Ele latiu. Achei estranha a reação porque, com toda a sinceridade, não criei um cachorro para ter rejeição à vida íntima das pessoas. A moça ainda insistiu um pouco e quis se aproximar mais. O meu Negão se levantou, mostrou que era alto, e latiu de jeito bem grosso, que é um latido que ele reserva para situações extremas.

A moça então, com um sorriso gentil, doce e compreensivo, me contou:

-Não é culpa dele, sabe? É que sou alcoólatra.

E me olhou. Eu olhei também e alguma coisa, tão frágil e imperceptível quanto o sereno do começo das noites, me convenceu que ela, apesar de bonita, já tinha se acostumado a ser evitada e pouco amada. A moça, então, ficou parada ali, em pé, na frente do Negão. Tudo nela queria fazer carinho nele e tudo nele queria evitar o que devia tresandar a bebidas. Ela pedia carinho, de quem fosse: meu, do meu cachorro, das outras pessoas na padaria. Sabia sorrir, mas era sorriso vazio, solitário, perdido.

Acariciei a nuca do meu Negão. Ele se acalmou. Pouco a pouco a moça bonita chegou mais perto. O meu cachorro ainda relutou um pouco, mudou de posição algumas vezes, lambeu o focinho, que é coisa que faz quando está ansioso. Mas, depois, de mansinho, deixou que a mão dela tocasse o pêlo branco dele.

E foi bem ali, naquele momento quase banal em varanda de padaria, que compreendi mais ainda o que tenho tentado compreender há anos. Que é também com a sinceridade das nossas próprias mazelas, amarguras, infelicidades, azares, que a gente ganha e merece afeto, carinho e doçura.

Ele não desejou nem quis que ela deixasse de ter o cheiro das bebidas. Fechou os olhos cor de mel e aceitou o afago. Esta capacidade de ser bom e de amar a pessoa exatamente como ela se apresenta é o que estou aprendendo com o meu Negão.